terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Paradigmas e paradoxos do universo feminino. Qual a verdade da sua marca?


Frame do comercial Viva La Vulva

Nos comerciais de absorventes íntimos menstruação é azul. Nas fotos de moda as mulheres são sempre magras e têm pele de porcelana. Nos “ensaios sensuais” – um eufemismo da minha parte - não há pelos pubianos. Felizmente algo está mudando.

Após mostrar que menstruação é vermelha em seu comercial #BloodNormal e, pasmem, que menstruar é normal e não há porque ter vergonha disto e ainda estimular a mulher, em sua maioria adolescentes, a ter vida normal durante este período, a Libresse, marca de produtos de higiene feminina sueca, dá sequência à  sua comunicação nada convencional com o comercial Viva La Vulva.

Para promover seu gel de banho íntimo, Viva La Vulva mostra uma série de objetos coloridos parecidos com os órgãos genitais femininos cantando alegremente. Detalhe, o comercial foi dirigido por uma mulher, Kin Gehring.

Com Viva La Vulva a marca “pretende celebrar as vulvas, em todas as suas formas e tamanhos. A campanha, criada pela AMV BBDO e lançada em 2018, foi veiculada na Finlândia, na Dinamarca e posteriormente no Reino Unido. A trilha sonora é uma adaptação da música “Praise You” de Fat Boy Slim, à qual foram acrescentadas frases como “eu devo celebrá-la, querida; eu devo elogiá-la”, “eu sou muito grata que você é minha” e “você me faz ser grata por ser mulher”. Ao final do vídeo, uma das modelos indaga “Vagina perfeita, o que é isso?” e outra afirma “Nós não falamos sobre isso, portanto, existem todos esses tabus”.  Não por acaso, a revista Adweek elegeu Viva La Vulva como uma das ações mais impactantes de 2018.

Na verdade, algo muito maior foi alcançado com este comercial: motivar as mulheres a falarem sobre as diferenças, incentivando-as a explorarem, aceitarem e amarem seus próprios corpos. Isso é revolucionário na comunicação tradicional. A mulher nunca foi tão respeitada e “empoderada” por nenhum produto feminino até pouco tempo. No Brasil, recentemente, a Skol, pediu desculpas às mulheres por tê-las retratado como objetos acéfalos em suas campanhas do passado – claro que não com estas palavras.

Quanto cito e analiso Viva La Vulva não é porque gostei do comercial - particularmente não gosto tanto assim - mas  como publicitário, aprendi há muito que gosto pessoal não tem nada a ver com comunicação. Não fazemos comunicação para o próprio umbigo – nosso ou do cliente – fazemos comunicação utilizando a linguagem do, e para o, público com quem queremos falar. Todas as mulheres jovens a quem mostrei este comercial adoraram, se identificaram, se sentiram valorizadas e representadas por ele. Até mesmo as mais pudicas ruborizaram e não conseguiram conter seus sorrisinhos de satisfação. Isto é comunicação. Comunicação não é o que você fala, é o que o outro entende ou seja, se falo A e o outro entende B a mensagem não foi entendida, não houve comunicação e se você não é o target esqueça, você não precisa entender.

Mea culpa - incoerência ou incompetência?


Mulheres magras, brancas e heterossexuais, esposas exemplares e mães abnegadas de famílias perfeitas, tipo “família Doriana”, vão perdendo espaço à realidade. O que não podia ser mostrado ou dito, agora não apenas pode como deve. A Natura há mais de 20 anos utiliza mulheres comuns em sua comunicação e, recentemente, a Unilever lançou uma campanha mundial contra os estereótipos femininos para tentar apagar seu passado, como explico mais adiante.

Tabus vêm sendo questionados. O Boticário levanta e mantém suas bandeiras a favor da diversidade. Seu comercial do dia dos namorados, em que casais hétero e homossexuais trocavam presentes, foi muito criticado, assim como o seu comercial do dia dos pais retratando uma família negra.  Nos dois casos, a empresa manteve seu posicionamento e ratificou sua intenção com as campanhas ao afirmar em notas à imprensa que “O Boticário se pauta pelo respeito a todas as pessoas e deseja que, muito em breve, questões como essa não gerem mais polêmicas."

Por outro lado, sustentando o status quo, o banco Santander patrocinou uma exposição de arte e bastou um protesto em relação às obras que retratavam nus e sexo - por parte de um pequeno grupo considerado ultra conservador pela mídia - para que a exposição fosse imediatamente cancelada pelo banco, que pediu desculpas oficiais com o clássico “não sabíamos de nada”, ao mesmo tempo em que elegeu um bode expiatório interno como “culpado” pelo ocorrido. Ora, se as obras expostas não estavam de acordo com a imagem do banco, por que ele patrocinou a exposição? E pior, uma vez que o banco se posiciona como “patrocinador de todo tipo de arte” por que não manteve uma posição coerente, como fez O Boticário? Falta de coerência ou de competência?

Outro caso que mostra o despreparo em retratar com respeito a mulher e sua diversidade foi o da Unilever com sua marca Dove - num vídeo postado no Facebook, uma mulher negra levanta a camiseta e surge uma mulher branca em seu lugar com a frase “100% gentle cleansers” obviamente  gerou protestos – mais do que justificados – foi taxado de racista, retirado da rede pelo anunciante e gerou um pedido de desculpas oficial da marca: "Em uma imagem postada recentemente no Facebook, erramos ao representar as mulheres negras. Nos arrependemos profundamente com as ofensas causadas" . Será mesmo? A incompetência da Dove ao utilizar mulheres negras de maneira ofensiva na sua comunicação não é novidade - um antigo anúncio do tipo “antes e depois” também foi acusado de racismo ao mostrar uma negra como o antes e uma branca como o depois.

Deve haver sim responsabilidade social em tudo que é veiculado – anunciantes,  agências e veículos são responsáveis pelo que as pessoas assistem na TV ou em seus smartphones. As marcas precisam acordar. Estereótipos, ódio, intolerância e segregação nunca fizeram sentido para mim, pessoalmente, e parece que não cabem mais neste mundo. Alimentar isto é canibalizar a própria marca.

A propaganda está desconstruindo os estereótipos femininos


Fora do Brasil, desde 2014 algumas marcas de produtos direcionados ao público feminino vêm desconstruindo estereótipos em suas campanhas.
A Mattel, fabricante da boneca Barbie adotou o “você pode ser qualquer coisa” para falar com as meninas que brincam com suas bonecas.
A  marca de absorventes Always trabalhou o mote #LikeAGril questionando o que significa fazer algo como uma menina e pede que a conotação negativa da frase seja ressignificada.

A Verizon Wireless mostra várias situações onde meninas são desestimuladas a realizarem ações simples do quotidiano porque não são “coisas de menina” com a marca se opondo a este tipo de limitação imposta ao sexo feminino.
Em #GrilsCan a marca de cosméticos Cover Girl mostra celebridades que se destacaram em áreas hostis às mulheres e convidam as garotas a se desafiarem ao ouvirem expressões como “meninas não podem”.


Estes são apenas alguns exemplos de como os estereótipos femininos vêm sendo desconstruídos pelos anunciantes. A questão é, por que razão eles estão fazendo isto?

Os porquês da mudança


Sempre existiram, e existirão, padrões de beleza – tanto masculino quanto feminino – e de comportamento. Modelos a serem seguidos que, na cabeça dos clientes, refletiam o aspiracional do público a que se destinavam. E tabus, como jamais utilizar líquido vermelho em comerciais de absorventes. Até aí, nada de novo, mas algo está mudando, aos poucos os paradigmas da comunicação vêm sendo quebrados. Por quê podemos hoje veicular um comercial como o Viva La Vulva? Será que agências e clientes mudaram? Sim e não.

Sim, eles mudaram, mas não por vontade própria. Foram obrigados, pelas mudanças sociais, a espelhar uma idealização mais próxima do mundo real em sua comunicação. Ou seja, fizeram isso pra não perder mercado.

O comercial Viva La Vulva foi criado baseado em pesquisas da marca Libresse sobre como as mulheres se sentem em relação às vulvas. Segundo as pesquisas, mais da metade das mulheres entrevistadas disseram que sentiram pressão para que seus genitais parecessem de certa forma, e 44% disseram que se sentiam constrangidas pela forma como suas vulvas parecem.

Mas há um abismo entre resultados de pesquisa e comunicação criativa. Neste caso, foi preciso que o anunciante tivesse a coragem de levantar uma bandeira em defesa do seu público. Em um comunicado anunciando a campanha, a marca disse que "Quer contribuir para uma cultura mais aberta, onde as mulheres podem se sentir orgulhosas do que têm, podem se sentir bem em falar sobre seus genitais e podem cuidar disso sem sentir vergonha."

Lembre-se que vivemos num mundo multifacetado onde mulheres são historicamente oprimidas de diversas formas: são obrigadas a usar burca, não podem dirigir, têm o clitóris amputado para não poderem sentir prazer, são propriedade dos homens, são bruxas a serem queimadas, taxadas como vadias se têm comportamento sexual similar ao estereótipo masculino. E não se ufane muito, no Brasil as mulheres só puderam votar a partir de 1932, o divorcio só foi aprovado, após processo secular, em  dezembro de 1977 e a mulher que é mãe e também é solteira ainda é chamada, pejorativamente, de “mãe solteira”.

A comunicação publicitária espelha a realidade?


A comunicação espelha idealizações, ela afirma que não há ninguém mais bonita que você. A publicidade sempre trabalhou e, acredito, sempre trabalhará com o eterno binômio: identificação/projeção - eu me identifico com o personagem ou estilo de vida retratado e o aspiracional me projeta em direção àquilo. O produto simboliza minha ascensão. Ele me representa naquilo que quero ser.

Hoje, para algumas mulheres, ter cabelos cacheados – que até pouco tempo era “cabelo ruim” – é sinônimo de orgulho. Negros e brancos formam casais. Homossexuais não precisam mais viver no armário. Crianças com Síndrome de Down e pessoas com deficiência não precisam ser escondidas da sociedade. Mas não se iluda, isso não ocorreu porque os anunciantes (pessoas) deixaram de ser racistas, machistas, homofóbicos e preconceituosos; ocorreu, sim, em função destes mercados não poderem mais ser ignorados. Ainda bem. Mesmo que a quebra de preconceitos na comunicação seja em função do poder econômico que estes públicos representam, paradigmas foram quebrados, tabus estão sendo questionados e confrontados com a realidade.

Narciso acha feio o que não é espelho


Um conceito básico de marketing: um produto não pode ser tudo para todo mundo e, sinto informar, você não é todo mundo.

Você pode torcer o nariz e não aceitar isto ou aquilo na comunicação atual. Pode se revoltar com a marca X ou com a empresa Y - porque elas não te representam. Que bom que elas passaram a representar também alguém diferente de você e assumiram que existe diversidade humana. Que bom que elas assumiram bandeiras.

Se as marcas forem honestas e mantiverem suas posições o mundo pode avançar, um pouquinho que seja, para diminuir a intolerância de Narciso a tudo aquilo que não lhe reflete.

Palavrinhas da moda que ajudam a vender também podem derrubar


As palavras diversidade, inclusão e sustentabilidade vêm sendo usadas indiscriminadamente na comunicação. Aqueles que se apropriam delas apenas como slogan do momento, e não em suas ações concretas, não duram.  As máscaras acabam caindo.

O que você acha de alguém que tem discurso público a favor do desarmamento mas possui armas? Que diz “aceitar” a homossexualidade, mas não a dos próprios filhos? Que defende a moral, a família e os bons costumes mas consome pornografia? Ou ainda dos pastores, padres, médicos, médiuns e líderes espirituais, entre outros – cheios de sabedoria, amor e luz em público - mas que cometem abuso sexual no privado? Sem falar dos que são fervorosamente contra o aborto até que uma de suas filhas adolescentes engravide. O mesmo raciocínio serve para quem não tem responsabilidade na comunicação de seus produtos “ecologicamente corretos”, mas que envenenam o meio ambiente com seus processos industriais. Um dia a verdade vem à tona.

Vivemos tempos em que tudo está conectado e essa realidade é ainda mais assustadora para aqueles que professam o que não fazem. Minorias, excluídos e oprimidos ganharam voz. Basta um post para que a credibilidade construída em cima da mentira venha a ruir internet abaixo.

Comunicação de verdade começa com ética e respeito, com senso crítico e questionamento e, se necessário, termina em saber dizer não a certos clientes – independentemente da verba que está em jogo.

Respeite os outros em suas verdades. Mas seja coerente ao levantar bandeiras. Tenha coragem de ser autêntico.

Viva a diversidade. Viva La Vulva e seus filhotes.

© Alfredo Luiz Baucia