Frame do comercial Viva La Vulva
Nos comerciais de absorventes íntimos menstruação é azul. Nas fotos de moda as mulheres são sempre magras e têm pele de porcelana. Nos “ensaios sensuais” – um eufemismo da minha parte - não há pelos pubianos. Felizmente algo está mudando.
Após mostrar que menstruação é vermelha em seu comercial #BloodNormal e,
pasmem, que menstruar é normal e não há porque ter vergonha disto e ainda
estimular a mulher, em sua maioria adolescentes, a ter vida normal durante este
período, a Libresse, marca de produtos de higiene feminina sueca, dá sequência à
sua comunicação nada convencional com
o comercial Viva La Vulva.
Para promover seu gel de banho íntimo, Viva La Vulva mostra uma série
de objetos coloridos parecidos com os órgãos genitais femininos cantando alegremente. Detalhe, o comercial foi dirigido por uma mulher,
Kin Gehring.
Com Viva La Vulva a marca “pretende celebrar as vulvas, em todas as suas formas e tamanhos”. A campanha,
criada pela AMV BBDO e lançada em 2018, foi veiculada na Finlândia, na Dinamarca e
posteriormente no Reino Unido. A
trilha sonora é uma adaptação da música “Praise You” de Fat Boy
Slim, à qual foram acrescentadas frases como “eu devo celebrá-la, querida; eu devo elogiá-la”, “eu sou muito grata que você é minha” e “você me faz ser grata por ser mulher”.
Ao final do vídeo, uma das modelos indaga “Vagina
perfeita, o que é isso?” e outra afirma “Nós
não falamos sobre isso, portanto, existem todos esses tabus”. Não por acaso, a revista Adweek elegeu
Viva La Vulva como uma das ações mais impactantes de 2018.
Na verdade, algo muito maior foi alcançado
com este comercial: motivar as mulheres a falarem sobre as diferenças,
incentivando-as a explorarem, aceitarem e amarem seus próprios corpos. Isso é
revolucionário na comunicação tradicional. A mulher nunca foi tão respeitada e
“empoderada” por nenhum produto feminino até pouco tempo. No Brasil,
recentemente, a Skol, pediu desculpas às mulheres por tê-las retratado como
objetos acéfalos em suas campanhas do passado – claro que não com estas
palavras.
Quanto cito e analiso
Viva La Vulva não é porque gostei do comercial - particularmente não gosto
tanto assim - mas como
publicitário, aprendi há muito que gosto pessoal não tem nada a ver com
comunicação. Não fazemos comunicação para o próprio umbigo – nosso ou do
cliente – fazemos comunicação utilizando a linguagem do, e para o, público com
quem queremos falar. Todas as mulheres jovens a quem mostrei este comercial
adoraram, se identificaram, se sentiram valorizadas e representadas por ele. Até
mesmo as mais pudicas ruborizaram e não conseguiram conter seus sorrisinhos de
satisfação. Isto é comunicação. Comunicação não é o que você fala, é o que o
outro entende ou seja, se falo A e o outro entende B a mensagem não foi
entendida, não houve comunicação e se você não é o target esqueça, você não
precisa entender.
Mea culpa - incoerência ou incompetência?
Mulheres magras, brancas e heterossexuais,
esposas exemplares e mães abnegadas de famílias perfeitas, tipo “família
Doriana”, vão perdendo espaço à realidade. O que não podia ser mostrado ou
dito, agora não apenas pode como deve. A Natura há mais de 20 anos utiliza mulheres comuns em sua comunicação
e, recentemente, a Unilever lançou uma campanha mundial contra os estereótipos
femininos para tentar apagar seu passado, como explico mais adiante.
Tabus vêm sendo
questionados. O Boticário levanta e mantém suas bandeiras a favor da
diversidade. Seu comercial do dia dos namorados, em que casais hétero e homossexuais
trocavam presentes, foi muito criticado, assim como o seu comercial do dia dos
pais retratando uma família negra.
Nos dois casos, a empresa manteve
seu posicionamento e ratificou sua intenção com as campanhas ao afirmar em notas à imprensa que
“O Boticário se pauta
pelo respeito a todas as pessoas e deseja que, muito em breve, questões como
essa não gerem mais polêmicas."
Por outro lado, sustentando
o status quo, o banco Santander
patrocinou uma exposição de arte e bastou um protesto em relação às obras que
retratavam nus e sexo - por parte de um pequeno grupo considerado ultra
conservador pela mídia - para que a exposição fosse imediatamente cancelada
pelo banco, que pediu desculpas oficiais com o clássico “não sabíamos de nada”,
ao mesmo tempo em que elegeu um bode expiatório interno como “culpado” pelo
ocorrido. Ora, se as obras expostas não estavam de acordo com a imagem do banco,
por que ele patrocinou a exposição? E pior, uma vez que o banco se posiciona
como “patrocinador de todo tipo de arte” por que não manteve uma posição
coerente, como fez O Boticário? Falta de coerência ou de competência?
Outro caso que mostra o
despreparo em retratar com respeito a mulher e sua diversidade foi o da
Unilever com sua marca Dove - num vídeo postado no Facebook, uma mulher negra
levanta a camiseta e surge uma mulher branca em seu lugar com a frase “100% gentle cleansers” obviamente gerou protestos – mais do que
justificados – foi taxado de racista, retirado da rede pelo anunciante e gerou
um pedido de desculpas oficial da marca: "Em uma imagem postada
recentemente no Facebook, erramos ao representar as mulheres negras. Nos arrependemos
profundamente com as ofensas causadas" . Será mesmo? A incompetência da Dove ao utilizar mulheres
negras de maneira ofensiva na sua comunicação não é novidade - um antigo
anúncio do tipo “antes e depois” também foi acusado de racismo ao mostrar uma
negra como o antes e uma branca como o depois.
Deve haver sim responsabilidade social em tudo
que é veiculado – anunciantes,
agências e veículos são responsáveis pelo que as pessoas assistem na TV
ou em seus smartphones. As marcas precisam acordar. Estereótipos, ódio, intolerância
e segregação nunca fizeram sentido para mim, pessoalmente, e parece que não
cabem mais neste mundo. Alimentar isto é canibalizar a própria marca.
A propaganda está desconstruindo os estereótipos femininos
Fora do Brasil, desde 2014 algumas marcas de produtos direcionados ao público feminino vêm desconstruindo estereótipos em suas campanhas.
A Mattel, fabricante da boneca Barbie adotou o “você pode ser qualquer coisa” para falar com as meninas que brincam com suas bonecas.
A marca de absorventes Always trabalhou o mote #LikeAGril questionando o que significa fazer algo como uma menina e pede que a conotação negativa da frase seja ressignificada.
Em #GrilsCan a marca de cosméticos Cover Girl mostra celebridades que se destacaram em áreas hostis às mulheres e convidam as garotas a se desafiarem ao ouvirem expressões como “meninas não podem”.
Estes são apenas alguns exemplos de como os estereótipos femininos vêm sendo desconstruídos pelos anunciantes. A questão é, por que razão eles estão fazendo isto?
Os porquês da mudança
Sempre existiram, e existirão, padrões de beleza
– tanto masculino quanto feminino – e de comportamento. Modelos a serem
seguidos que, na cabeça dos clientes, refletiam o aspiracional do público a que
se destinavam. E tabus, como jamais utilizar líquido vermelho em comerciais de absorventes.
Até aí, nada de novo, mas algo está mudando, aos poucos os paradigmas da comunicação
vêm sendo quebrados. Por quê podemos hoje veicular um comercial como o Viva La
Vulva? Será que agências e clientes mudaram? Sim e não.
Sim, eles mudaram, mas não por vontade própria.
Foram obrigados, pelas mudanças sociais, a espelhar uma idealização mais próxima
do mundo real em sua comunicação. Ou seja, fizeram isso pra não perder mercado.
O comercial Viva La Vulva foi criado baseado em pesquisas da marca Libresse sobre como as mulheres se sentem em relação às vulvas. Segundo as pesquisas, mais da metade das mulheres entrevistadas disseram que sentiram pressão para que seus genitais parecessem de certa forma, e 44% disseram que se sentiam constrangidas pela forma como suas vulvas parecem.
Mas há um abismo entre resultados de pesquisa e comunicação criativa. Neste caso, foi preciso que o anunciante tivesse a coragem de levantar uma bandeira em defesa do seu público. Em um comunicado anunciando a campanha, a marca disse que "Quer contribuir para uma cultura mais aberta, onde as mulheres podem se sentir orgulhosas do que têm, podem se sentir bem em falar sobre seus genitais e podem cuidar disso sem sentir vergonha."
Lembre-se que vivemos num mundo multifacetado onde mulheres são historicamente oprimidas de diversas formas: são obrigadas a usar burca, não podem dirigir, têm o clitóris amputado para não poderem sentir prazer, são propriedade dos homens, são bruxas a serem queimadas, taxadas como vadias se têm comportamento sexual similar ao estereótipo masculino. E não se ufane muito, no Brasil as mulheres só puderam votar a partir de 1932, o divorcio só foi aprovado, após processo secular, em dezembro de 1977 e a mulher que é mãe e também é solteira ainda é chamada, pejorativamente, de “mãe solteira”.
A comunicação publicitária espelha a realidade?
A comunicação espelha idealizações, ela afirma
que não há ninguém mais bonita que você. A publicidade sempre trabalhou e,
acredito, sempre trabalhará com o eterno binômio: identificação/projeção - eu
me identifico com o personagem ou estilo de vida retratado e o aspiracional me
projeta em direção àquilo. O produto simboliza minha ascensão. Ele me
representa naquilo que quero ser.
Hoje, para algumas mulheres, ter cabelos
cacheados – que até pouco tempo era “cabelo ruim” – é sinônimo de orgulho. Negros
e brancos formam casais. Homossexuais não precisam mais viver no armário. Crianças
com Síndrome de Down e pessoas com deficiência não precisam ser escondidas da
sociedade. Mas não se iluda, isso não ocorreu porque os anunciantes (pessoas) deixaram
de ser racistas, machistas, homofóbicos e preconceituosos; ocorreu, sim, em
função destes mercados não poderem mais ser ignorados. Ainda bem. Mesmo que a
quebra de preconceitos na comunicação seja em função do poder econômico que
estes públicos representam, paradigmas foram quebrados, tabus estão sendo
questionados e confrontados com a realidade.
Narciso acha feio o que não é espelho
Um conceito básico de marketing: um produto não
pode ser tudo para todo mundo e, sinto informar, você não é todo mundo.
Você pode torcer o nariz e não aceitar isto ou
aquilo na comunicação atual. Pode se revoltar com a marca X ou com a empresa Y
- porque elas não te representam. Que bom que elas passaram a representar
também alguém diferente de você e assumiram que existe diversidade humana. Que
bom que elas assumiram bandeiras.
Se as marcas forem honestas e mantiverem suas
posições o mundo pode avançar, um pouquinho que seja, para diminuir a
intolerância de Narciso a tudo aquilo que não lhe reflete.
Palavrinhas da moda que ajudam a vender também podem derrubar
As palavras diversidade, inclusão e
sustentabilidade vêm sendo usadas indiscriminadamente na comunicação. Aqueles
que se apropriam delas apenas como slogan do momento, e não em suas ações
concretas, não duram. As máscaras
acabam caindo.
O que você acha de alguém que tem discurso público
a favor do desarmamento mas possui armas? Que diz “aceitar” a homossexualidade,
mas não a dos próprios filhos? Que defende a moral, a família e os bons
costumes mas consome pornografia? Ou ainda dos pastores, padres, médicos,
médiuns e líderes espirituais, entre outros – cheios de sabedoria, amor e luz
em público - mas que cometem abuso sexual no privado? Sem falar dos que são
fervorosamente contra o aborto até que uma de suas filhas adolescentes
engravide. O mesmo raciocínio serve para quem não tem responsabilidade na
comunicação de seus produtos “ecologicamente corretos”, mas que envenenam o
meio ambiente com seus processos industriais. Um dia a verdade vem à tona.
Vivemos tempos em que tudo está conectado e
essa realidade é ainda mais assustadora para aqueles que professam o que não
fazem. Minorias, excluídos e oprimidos ganharam voz. Basta um post para que a
credibilidade construída em cima da mentira venha a ruir internet abaixo.
Comunicação de verdade começa com ética e
respeito, com senso crítico e questionamento e, se necessário, termina em saber
dizer não a certos clientes –
independentemente da verba que está em jogo.
Respeite os outros em suas verdades. Mas seja coerente
ao levantar bandeiras. Tenha coragem de ser autêntico.
Viva a diversidade. Viva La Vulva e seus
filhotes.
© Alfredo Luiz Baucia
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